É comum ouvirmos ou lermos que o Brasil é um dos países socialmente mais desiguais do mundo, que há uma persistência histórica de uma estrutura social em que amplos estratos da população se encontram imersos em pobreza material e que há dramáticas diferenças de acesso a direitos sociais básico. Longe de ser apenas uma representação negativa do Brasil, a persistência da pobreza contrastando com um acúmulo de riquezas em parcelas diminutas da população é concretamente um dos mais graves problemas sociais do país.
Para o aprofundamento do entendimento da desigualdade social no Brasil, ao menos nas questões de desigualdade de renda e acúmulo de riquezas, se faz necessário analisar o perfil geral da sua geração e da sua distribuição. No caso brasileiro, o Produto Interno Bruto (PIB), que é soma de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região, durante um período determinado, situou-se entre 2012 e 2018, entre o 7º e o 8º do mundo.
Gráfico 1- Maiores PIB's do mundo em 2012
Em que pese crises momentâneas e desacelerações ocorridas na economia brasileira, nos últimos anos percebe-se, pelos dados acima, que o PIB brasileiro não é desprezível quando comparado aos de outros países do mundo. Sendo assim, o fenômeno social da pobreza não pode ser explicado tendo por base uma escassez geral na produção de riquezas e rendas do país.
A fim de analisar e contrastar os números do PIB brasileiro com a questão da desigualdade social apresenta-se aqui alguns dados referentes ao índice de Gini do país.
O Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um (alguns apresentam de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. Na prática, o Índice de Gini costuma comparar os 20% mais pobres com os 20% mais ricos.Vejamos alguns dados do índice de Gini brasileiro comparado com o de outros países:
Infográfico 1- Os Ginis do mundo em 2014
Se faz relevante comparar o índice de Gini brasileiro com o de alguns outros países. Para efeito de análise, observe-se na Tabela-1 o PIB do Canadá, da Austrália, da Espanha e da Coréia do Sul. Em 2014 esse países tinham, respectivamente o 11º, 12º, 13º e 14º PIB's do mundo. Já o Brasil apresentava o 7º maior PIB. Porém, quando observado o mapa acima percebe-se que estes quatro países, mesmo com PIB's menores que o brasileiro, possuíam Índices de Gini melhores. Tal raciocínio sugere que o Brasil possui, ainda em que pese efeitos de crises econômicas locais e globais, um volume de produção de riquezas e rendas nada desprezível. Porém, a renda se mantém concentrada em alguns poucos estratos da população.
Ainda como sugestão dos dados, percebe-se novamente que fenômeno da pobreza no caso brasileiro não comporta como explicação uma escassez geral da produção de riquezas e rendas, mas sim, conforme já dito, uma alta concentração das rendas e das riquezas socialmente produzidas.
Quando comparados alguns Índices de Gini do mundo percebe-se que tais dados evidenciam Brasil como um dos países mais desiguais do mundo.
Tabela 2- Índices de Gini do mundo em 2016
Tabela 3- Piores Índices de Gini do mundo em 2017
Observa-se que em 2017 ao mesmo tempo que o Brasil marcava o 7º PIB do mundo, também evidenciava o 10º pior Índice de Gini. Mais uma vez os dados sugerem uma economia com relevante potencial de produção de riquezas e rendas, porém com uma estrutura social que leva à concentração desta produção.
Um instrumento que bem evidencia a concentração de renda em um país ou região é um tipo de gráfico conhecido como Parada de Pen.
O sistema tributário como reprodutor da desigualdade social brasileira
Um instrumento que bem evidencia a concentração de renda em um país ou região é um tipo de gráfico conhecido como Parada de Pen.
Infográfico 2- A Parada de Pen
O gráfico da Parada de Pen permite visualizar a grande concentração de renda no brasil, onde a imensa maior parte da renda concentra-se em menos de 5% da população. Em que pese o gráfico acima apresentar dados dos anos de 1997 a 1999, outros dados mais atuais atestam a continuidade e até mesmo aprofundamento da concentração de renda (matéria sugerida: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/desigualdade-bate-recorde-no-brasil-mostra-estudo-da-fgv/?fbclid=IwAR0y-yz4RFDWdzwb-Zg3yD5kTgIHXSgrK1IBxsUI6Z3W_VhwOVRNedOLmSY).
A partir dos dados do PIB e do Índice de Gini brasileiro e da Parada de Pen, observa-se uma economia com razoável produção social de riquezas e rendas, porém com alta concentração desta produção. Esta alta concentração salienta que a há no Brasil uma arquitetura social bastante desigual e concentradora.
O sistema tributário como reprodutor da desigualdade social brasileira
A persistência da desigualdade social tem sido um dos principais objetos de estudos das Ciências Sociais no Brasil. São vários os sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e economistas que se dedicam a entender esse fenômeno social. Destacaremos aqui o artigo do economista e sociólogo Marcelo Medeiros (Os Ricos e a Formulação de Políticas de Combate à Desigualdade e à Pobreza no Brasil), especialista no tema.
- Perfil de Marcelo Medeiros: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=25444
- Artigo (Os Ricos e a Formulação de Políticas de Combate à Desigualdade e à Pobreza no Brasil): http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=4561
Conforme já visto, a estratificação social brasileira tem como o seu maior destaque a concentração de renda e riqueza, gerando altos números no Índice de Gini. Tal estrutura pode representada graficamente numa pirâmide, onde há poucas pessoas no topo, um pouco mais no centro e um número bem maior na base. Destacando que o que diferencia é na parte da cima da representação gráfica que está a maior parte da renda e da riqueza.
Dessa forma, a representação colocada indica uma sociedade com poucos, situados no topo, concentrando a maior parte da renda e da riqueza. Em contraponto, na base, estão muitos tendo que dividir entre si a menor parte da renda e da riqueza.
Sociedades com baixos Índices de Gini não comportam tal representação acima, uma vez que a distância entre as parcelas mais ricas e mais pobres é menor. Há também melhor distribuição da renda, o que indica uma maior concentração populacional nos estratos sociais médios. A melhor forma de representação gráfica destas estruturas sociais seria um losango.
O grande problema que Marcelo Medeiros tenta responde no seu estudo é saber que tipos de ações do poder público poderiam contribuir para a diminuição da desigualdade social, consequentemente a diminuição do Índice de Gini e a transição da estrutura social brasileira para uma representação mais próxima do losango do que do triângulo.
Medeiros parte da constatação de um dos principais instrumentos que reforçam a concentração da renda socialmente produzida no Brasil é o sistema tributário, ou seja, os impostos. Não há, no seu argumento, uma crítica ao tamanho volume tributário brasileiro, mas sim a quem ele é direcionado.
O sistema tributário brasileiro é regressivo, ou seja, da renda das camadas sociais mais pobres são extraídos custos com impostos proporcionalmente maiores do que os custos com impostos pagos pelos mais ricos. Isso faz com que haja transferência de renda dos mais pobres para o mais ricos e sedimenta a permanência da desigualdade social.
(...) o país segue com uma carga tributária apoiada em tributos sobre bens e serviços (cerca de metade de toda a arrecadação), com reduzido peso da tributação sobre renda e patrimônio (23% da arrecadação). (https://www.oxfam.org.br/tags/relatorio-sobre-desigualdades).
Ou seja, mais da metade do sistema tributário brasileiro está posto de maneira embutida no custo do consumo de bens e serviços. Isso faz com que o consumo feito por camadas de média e baixa renda seja bastante taxado e que daí, portanto, haja uma transferência de renda dos de baixo para o estado. Na ponta de cima da estrutura social, onde há concentração de patrimônio e estão as maiores rendas, o peso dos impostos se dá forma mais branda, pois proporcionalmente acaba sendo menor. Isso faz com que haja, proporcionalmente, menor pagamento de impostos por parte dos mais ricos. O pagamento proporcional de impostos ser maior para os mais pobres do que para os mais ricos é o que se chama de sistema tributário regressivo. Tal sistema contribui fortemente para a manutenção dos altos níveis de desigualdade social no Brasil.
Conforme já posto, Medeiros parte da contatação de que o Brasil pratica um sistema tributário regressivo. A partir disso, levanta hipóteses de ações públicas que poderiam ser efetivadas no sentido de diminuição da desigualdade social. A partir de agora veremos cada uma destas hipóteses levantadas e que conclusões o pesquisador chega a cada uma delas.
Hipótese 1- Diminuir o número de filhos dos mais pobres?
A pobreza no Brasil não pode ser associada a um número elevado de filhos nas famílias. Se nenhuma família brasileira tivesse mais de quatro filhos com até cinco anos de idade, a proporção de pobres seria a mesma, 33%. Se o controle fosse mais radical e não houvesse no Brasil um filho sequer de até cinco anos de idade, o número de pobres (e da população como um todo) diminuiria, mas sua proporção cairia apenas um ponto percentual (MEDEIROS, 2003)
Hipótese 2- Buscar altos índices de crescimento econômico?
Mesmo que o país fosse capaz de manter, por duas décadas, taxas estáveis de crescimento de 4% ao ano, isto é, mesmo se crescesse mais do que o dobro da velocidade das últimas décadas e duplicasse o PIB atual, a pobreza incidiria ainda sobre 12% da população. Apenas no caso de ocorrer um crescimento a taxas estáveis de 6% ao ano, o que corresponderia a repetir duas vezes consecutivas o “milagre econômico” da década de 1970, sem, porém, piorar a distribuição da renda, a incidência da pobreza ficaria abaixo do patamar dos 10% da população. O termo “milagre”, nesse caso, dá uma dimensão adequada de quão difícil seria crescer novamente nesse ritmo. (MEDEIROS, 2003)
Hipótese 3- Tributos como forma de combate a desigualdade?
Para Marcelo Medeiros uma solução viável para diminuição da desigualdade seria transferência da renda nacional via impostos progressivos. Ou seja, aumentar a carga tributária sobre patrimônio e renda dos mais ricos, ao passo que, na mesma proporção, diminuir a carga aos mais pobres, na sua maior parte embutida no custo final de bens de consumo e serviços. Dessa forma, a renda do topo seria desconcentrada e redistribuída na base, diminuindo assim a desigualdade e fomentando uma outra estrutura social.
Como a desigualdade social é vista pelos estratos mais ricos e mais pobres no Brasil?
Conforme visto acima, das hipóteses testadas por Marcelo Medeiros a que é apontada com maior potencial de eficácia na desconcentração da renda nacional seria a que modificasse a lógica do sistema tributário brasileiro, de regressiva para progressiva. Porém, tal caminho implica em conflitos de interesses, pois significaria não apenas distribuir a renda produzida, mas levaria, a longo prazo, a uma significativa mudança na estrutura social, da pirâmide ao losango. É possível supor que a diminuição da desigualdade social resultaria, num país historicamente muito desigual, num maior potencial de ascensão social dos de baixo e consequentemente o acirramento da concorrência social com os do meio e de cima da pirâmide social gerando assim conflitos sociais, não apenas por rendas e riquezas, mas também por prestígio e poder, entre os estratos ascendentes e os que já se encontram em posição média ou superior na estrutura.
É a partir da percepção de que o combate à desigualdade social abre conflitos sociais próprios, pois implica em disputa de recursos que são escassos, que a socióloga brasileira Celi Scalon trás um estudo sobre como a questão de como a desigualdade é vista pelos brasileiros. De uma forma geral, a sua pesquisa partiu de aplicação de questionários com pessoas de grupos sociais, os de altíssima renda e os de baixíssima renda. Foram selecionadas famílias pertencentes aos 10% mais ricos e os 10% mais pobres da população. "O survey (pesquisa) sobre desigualdades teve cobertura nacional, com duas mil
entrevistas, realizadas em 195 municípios, incluindo áreas urbanas e rurais". (SCALON, 2007).
- Artigo (Justiça como igualdade? A percepção da elite e do povo brasileiro). http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-45222007000200007&script=sci_abstract&tlng=pt
Dentre as diversas perguntas do questionário algumas foram essas:
Pergunta: Somos uma sociedade desigual?
Resultados: Na elite, 89% concordaram totalmente, e 7,5% concordaram em parte, ou seja, 96,5% concordaram com essa afirmação. O que estamos aqui denominando “povo” inclui 85% que concorda totalmente, e aproximadamente 11% que concorda em parte. (SCALON, 2007)
Pergunta: Que ator social tem a responsabilidade de combater a desigualdade social?
Resultados: Tanto elite como povo atribuíram esse encargo quase exclusivamente ao governo, com percentuais de 63% e 62% respectivamente. Se somarmos a esse o percentual que incorpora os respondentes que escolheram “deputados e senadores”, ampliando assim o leque do que entendemos como poder público, temos 74% da elite e iguais 74% do povo. Quando se trata de chamar para si a responsabilidade, observamos parcos 6% da elite e 4% do povo. (SCALON, 2007)
É perceptível uma imagem de concordância, tanto da elite quanto dos mais pobres, de que é o estado que possui a responsabilidade central no combate a desigualdade. A primeira vista isso sugere um consenso e um insignificante potencial de conflito em relação a que ator social deve comandar o combate à desigualdade. Se combinássemos isso com a hipótese de modificação do sistema tributário apontada por Marcelo Medeiros poderíamos supor que não há pontos de conflitos entre os de cima e os de baixo da estrutura social brasileira com esse tema, uma vez que há concordância geral de que a desigualdade é um problema real e que de que o estado é o melhor ator para intervir neste fenômeno social.
Porém, nos questionários estudados por Scalon também foi posta a questão de mudança de sistema tributário de regressivo para progressivo, eis a pergunta e os resultados:
Gráfico 4- Opiniões dos estratos mais ricos e mais pobres sobre impostos progressivos
Perceba-se que, nesse ponto, que o concesso exposto anteriormente, sobre a desigualdade social como problema e o papel central do estado no seu enfrentamento, não se repete. Dos que concordam totalmente com um sistema tribuário progressivo a maioria está entre o "povo", 31,3%, já na elite o percentual é 20,9%. Quanto aos que discordam totalmente: 23,2% do "povo" e 41,9% da "elite". Ou seja, os estratos mais ricos e mais pobres divergem quanto a questão da transferência de renda dos mais ricos com vistas ao combate da desigualdade social.
(...) a solução passa pelo Estado, que, por sua vez, tem as mãos atadas, pois não deve aumentar impostos para investir em benefícios sociais. Por outro lado, a sociedade não aparece como o principal ator na solução das desigualdades. Os agentes não se reconhecem na posição de combater as disparidades, mesmo afirmando que o fato de não se unirem para combatê-las contribui para sua persistência. Diante de tal cenário, parece não haver saída possível. (SCALON, 2007)
A desigualdade percebida é pelos estratos pesquisados como um grave problema, porém a desconcentração da renda é um tema delicado, pois significa a modificação de posições sociais referentes, nos conceitos weberianos, à riqueza, ao prestígio e ao poder. Modificar a estrutura social é um jogo onde alguns estratos sociais ganham e outros perdem, daí ser o problema da desigualdade social um ponto de conflito, ainda sem solução de concesso na sociedade brasileira.
Leitura obrigatória:
- Tempos Modernos, Tempos de Sociologia. Capítulo 18 (Desigualdades de Várias Ordens). Página. 278-293.
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