domingo, 18 de agosto de 2019

Os sentidos do trabalho

SOCIOLOGIA 2º ANO.


ATIVIDADES A DISTÂNCIA DEVIDO AO ISOLAMENTO SOCIAL- BLOCO 1


O trabalho e sua ressignificação ao longo da História

INTRODUÇÃO
Para que haja uma clara compreensão do momento atual e das imbricações do mundo do trabalho e a vida humana, necessário fazer uma imersão nos diversos acontecimentos e transformações ocorridas na humanidade. Desde o abandono do sentimento coletivo primitivo que unia os indivíduos, à construção da moral individualista e, novamente, a retomada por um ideal mais cooperativista e coletivo, pensado num bem estar social. Conforme se constatará a seguir, ao longo da história a relação do indivíduo com seu labor vem se modificando de acordo com os acontecimentos e valores cunhados por cada período social. Sobre essas transformações é que se dará a análise.

1. A PRÉ-HISTÓRIA E O CONCEITO DE TRABALHO PARA OS GREGOS.
Quando se procura demonstrar a significação do trabalho ao longo dos períodos da história, é preciso levar em conta o sentido do trabalho como valor numa sociedade, numa determinada época. São os homens na sua convivência social que atribuem valor a determinada coisa. Assim, a compreensão da mutabilidade da significação e representação do trabalho para a humanidade é viés que faz-se necessário se compreender.

O ser humano tanto transforma o ambiente em que está imerso, como é transformado por esse ambiente, sendo um ser biopsicossocial e histórico. Nesta sentido, significa dizer que há influências biológicas, psicológicas e sociais ao longo da historia para a formação do indivíduo dinâmico e mutável.

Na visão do homem "primitivo", o trabalho por conta própria servia apenas para sua sobrevivência. A caça e a coleta foram os primeiros modos de subsistência do Homo Sapiens que tinha como instinto retirar da natureza seu sustento, imerso numa rotina nômade.

Estes povos antigos andavam em bandos que migravam entre as regiões em busca de alimento. Internamente havia pouca diferenciação política, não havendo líderes e nem liderados permanentes. Havia pouca possibilidade de acumulação, pois os bens restringem-se ao que cada pessoa conseguiria carregar.

Notava-se nessas sociedades a divisão do trabalho baseada no gênero e idade, geralmente com mulheres cuidando de coleta enquanto homens caçavam. Porém, esses papéis não eram rigidamente definidos. Aqui, o conhecimento tradicional e o aperfeiçoamento das ferramentas se davam pela interação do homem com o ambiente que o cercava e assim aprimorar o nível de suas habilidades.

Divide-se tradicionalmente a Pré-história em 3 períodos: o Paleolítico, ou idade da pedra lascada, que se estendeu por 2 milhões de anos; o Neolítico ou período da pedra polida, que teve início há mais de 10 mil anos e a Idade dos metais, por volta de 5.000 a.c. (Braick, Mota, 2007, pg. 28).

A coleta e a caça como meio de subsistência foi dando lugar ao sedentarismo. O ser agora passou a procurar moradia próxima aos rios e terras férteis para o plantio e com isso, não mais vagar em busca da subsistência. A consciência da transformação daquilo que se dispunha na natureza para a criação de utensílios de auxílio no dia a dia deu ao homem a percepção do seu poder de transformador do meio.

Da transformação entre o período da pedra lascada, o período da pedra polida e, da Idade dos metais nota-se a mudança dos materiais empregados na formação dos utensílios auxiliadores utilizados pelo homem do período. Tal situação estava relacionada ao acúmulo de experiências e percepções desenvolvidas por estes indivíduos no seu constante contato e alteração do meio.

Nos dizeres de Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota:

Os últimos 100 mil anos do período Paleolítico assistiram ao aperfeiçoamento dos artefatos, num processo de crescente elaboração cultural que deu origem ao arco, a flecha, às lanças e a utensílios variados de argila, osso e dentes. Além disso, as modificações dos ambiente terrestre se refletiam nos hábitos dos homens, contribuindo para a sedentarização de alguns grupos, isto é, sua fixação em determinadas regiões. (2007, pg. 29)

Com isso, esta primeira forma humana de organização social foi aumentando e se tornando complexa. Agora alguns grupos sociais poderiam dispor de conhecimento para domar animais para criação e entender da terra e do clima para produção de seus próprios alimentos. O homem aqui já não esperava pura e simplesmente a natureza, ele, aos poucos, aprendia a dominá-la, tendo o trabalho no como atividade que propiciava a mudança do meio a que se estava situado.

O sedentarismo, as novas formas de conhecimento adquiridas, as experiências do contato com a natureza permitiram a validação  da nova forma de organização social agora em aldeias e pequeno comércio, ainda que sem moeda propriamente dita. As aldeias eram mais complexas na organização, na convivência social, na divisão das tarefas e na política do que os bandos.

Nota-se o avanço da divisão no trabalho: no período inicial, quase inexistente, se dava apenas para diferenciar as tarefas atribuídas ao homem e aquelas atribuídas às mulheres, não havia, portanto, trabalhadores especializados e produção do excedente. Com a formação das aldeias já se abre para a especialização dos que deixaram de serem agricultores e passaram a serem artesãos, já sendo necessária uma visão de produção de excedente para o comércio.

O aumento da complexidade das relações humanas foi dando espaço a outras formas de identidade do trabalho, na medida em que os homens passaram a agrupar-se e a cambiar bens como a forma do que mais tarde se denominou “mercadoria”. A união de algumas aldeias, a formação de cidades, foi dando formação aos impérios e civilizações que se estenderam por todo o território do globo. Não foi diferente na Grécia Antiga.


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Sobre as relações sociais e o trabalho na Grécia antiga, predominou a mão de obra escrava, que provinha de devedores ou prisioneiros de guerras. Cada cidade-estado tinha a sua própria forma político-administrativa de gerir-se. Nas palavras de Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota:

"De acordo com o filósofo Aristóteles (que escreveu uma Constituição de Atenas, no século IV a.c.), a sociedade ateniense estava dividida em eupátridas ou 'bem nascidos', ou seja os membros da aristocracia que podiam reivindicar ancestrais prestigiosos; os georgóis, pequenos proprietários de terras; e demiurgos, que eram trabalhadores urbanos. Estes três grandes grupos comporiam a classe dos cidadãos. Durante o período democrático em Atenas, para ter a cidadania, isto é, gozar de direitos políticos e possuir terras era preciso ter pais e mães atenienses. Os metecos (estrangeiros) e os escravos não eram considerados cidadãos. As mulheres e crianças tinham uma cidadania restrita, pois não podiam participar da vida política." (2007, pg. 76)

O tempo dedicado à pólis, à contemplação do homem considerado “livre” tinha um significado mais digno e mais almejado do que o tempo dedicado ao labor, uma vez que somente as pessoas que não precisassem se ocupar das atividades ligadas ao campo das necessidades poderiam dar vazão ao que se entendia por ócio: o espaço para o pensamento político/racional.

Tratava-se de uma nítida separação entre o mundo do  trabalho, "labor", desvalorizado moralmente e o mundo e o mundo regido pela "razão", esse bem mais valorizado e almejado pelos atenienses. O trabalho para esta civilização impedia o “físico” das atividades mentais e reflexivas. Logo, o ócio seria um estado do ser – o estado de estar livre da necessidade de trabalhar e ter a possibilidade de dedicar-se às ideias e ao espírito, na contemplação e busca da verdade, do bem e da beleza.

Para que isso pudesse ser feito, os gregos tinham que dispor de outros para fazer o trabalho braçal. Os escravos faziam essas vezes, portanto. Os trabalhos nos campos, nas minas de minérios, nas olarias, na construção civil, e os domésticos eram executados por escravos. Na Grécia Antiga uma pessoa tornava-se escrava de diversas formas podendo ser através da captura em guerras ou a escravidão por dívidas.

É próprio do povo grego esse processo de reflexão sobre si mesmo, sobre o espaço público e o privado e a importância da pólis, sobre suas características, sobre seu modo de vida e de fazer arte, com essa investigação histórica que se pode aferir a existência e de que maneira se via e se construía o papel do homem na Grécia antiga.

Nos dizeres de Mario Sergio Cortella, no livro intitulado “Qual a sua obra? Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética”, o filósofo aduz que:

“no campo da filosofia a noção mais forte em relação à definição de humano é dada por Aristóteles, que, no século V a.C, diz: “O homem é um animal racional”. Ou seja, o que define a humanidade de alguém – e, portanto, a sua dignidade – é a capacidade de dedicar-se ao pensamento e não às obras manuais. A tal ponto que, no mundo escravocrata da filosofia e da ciência gregas, os trabalhos manuais e braçais afastavam o homem da sua essencial humana que acontece através do exercício da razão. Platão, um dos maiores pensadores da história, desprezava o trabalho manual. De tal modo que ele achava que, quando se estabelecessem os infernos, aqueles que deveriam ficar juntos com os escravos lá, eram os pintores, os escultores, todos aqueles que fossem da elite, mas que desenvolvessem alguma atividade com as mãos. O mundo da antiguidade, que é a base da nossa sociedade ocidental, coloca o trabalho como um castigo do ponto de vista moral-religioso ou uma concepção de castigo a partir da vontade dos deuses na cultura grega...”. (Cortella,2017, pg.19)

Neste sentido, importa apresentar as ideias de Aristóteles, no livro Política:

"Devemos admitir que não podemos considerar como cidadãos todos aqueles que são necessários à existência da cidade; por exemplo, crianças não são cidadãos no mesmo sentido que um adulto; este é cidadão absolutamente, enquanto as crianças o são incompletamente. Com efeito, nos tempos antigos, entre algumas nações a classe dos artífices era constituída de escravos ou estrangeiros e é por essa razão que a maioria deles hoje tem essa origem. A melhor forma de cidade não deverá admitir os artífices como se fossem cidadãos; mas se forem admitidos, então nossa definição de virtude não se aplicará a todo cidadão e homem livre, mas apenas aos cidadãos isentos das atividades servis do trabalho. Aqueles que prestam seus serviços suprindo as necessidades da vida de outros indivíduos são escravos, e os que trabalham para o público são artífices ou assalariados." (Aristóteles, 2010, pg. 121).

Portanto, a disposição da sociedade grega, principalmente da utilização da mão de obra escrava proporcionou o pensamento filosófico de uma aristocracia que justificava em suas leis uma forma de dominação que validava a exploração de determinada parte da população da polis. 

Nos dizeres de Hannah Arendt, na Grécia clássica, nem o labor, nem o trabalho eram tidos como suficientemente dignos para construir a dignidade necessária a um cidadão, além do mais:

“...o trabalho escravo pôde desempenhar papel tão importante nas sociedades antigas, e o seu desperdício e improdutividade passaram despercebidos, é que a antiga cidade-estado era basicamente um <<centro de consumo>>, ao contrário das cidades medievais, que eram principalmente centros de produção...”. (Arendt, 2009, pg. 132)

Portanto, neste ponto é possível perceber pistas iniciais sobre a valoração do trabalho humano ao longo das civilizações e da construção do papel do homem como ser social. No período primitivo da pré-história, o trabalho era visto como mecanismo de auto subsistência, a medida em que desenvolveu a capacidade de produzir excedentes foi recebendo outros significados. No auge da civilização grega, ele foi relegado àqueles que não estariam determinados pela sua posição social ao pensamento e a reflexão.


2. DO TRIPALIUM À DIGNIFICAÇÃO DO HOMEM ATRAVÉS DO TRABALHO: A MUDANÇA DE PARADIGMA.

A origem da palavra trabalho vem do latim tripalium, nome dado a um instrumento formado por três estacas de madeira, usado na Antiguidade pelos romanos para torturar escravos. Punição e suplício estavam intimamente ligados à ideia de trabalho que se estende do período antigo ao medievo.



REPRESENTAÇÕES DO INSTRUMENTO TRIPALIUM


O sistema escravista de produção do Império Romano foi dando lugar ao sistema servil de produção, que iria predominar na Europa feudal. O Feudalismo teve origem com a crise do Império Romano, em razão da insegurança gerada pelas invasões dos povos germânicos.

A sociedade medieval era estática, dividida em estamentos. Havia a camada da nobreza feudal, o clero, os servos e pequenos artesãos. Já aqui se constata uma divisão clara de quem trabalha: servos e artesão, que constituíam o patamar inferior da pirâmide social.

A forma servil da idade média em nada tinha a ver com o sistema escravista. O servo detinha a posse de pedaço de terra, embora a propriedade fosse do senhor feudal, e utensílios para dali tirar o sustento da sua família e não poderia ser vendido, estando ligado à gleba se esta fosse passada para outro senhor, o camponês era servo da gleba e não de outro indivíduo. 

Como forma de controle havia tributos: a corveia que consistia em trabalho compulsório e gratuito nas terras do senhor em dias determinados da semana. A talha, parte da produção do que eram produzidas no manso servil, as banalidades, o uso de ferramentas e utensílios.

Não se deve olvidar, porém, que embora a vida econômica se baseasse na produção agrícola, no período da baixa idade média, a ascensão dos burgos permitiu a produção e circulação de bens entre os domínios senhoriais.

Também nesse período existia o referencial religioso católico do trabalho como castigo, sofrimento e penitência do homem, ou seja, dos servos, já que o nobre não deveria trabalhar, pois a sociedade estava dividida nos estamentos com funções bem definidas.

Clero- dedicavam-se as questões espirituais
Nobres- dedicavam-se as questões militares
Camponeses servos- dedicavam-se ao trabalho, à produção

É com o Renascimento que surge a concepção de que o trabalho é inerente ao homem e a ideia de maestria, aperfeiçoamento e perfeição do artesão. O artesão que bem domina o seu ofício passa a ser valorizado socialmente. Houve mudanças no plano político, artístico, moral, no comércio e com isso a valorização do Homem (humanismo).

Dessas mudanças ocorridas ao longo deste período importa dizer que o Calvinismo, corrente teológica da Reforma Protestante ligada à burguesia, valorizou o trabalho ao criar uma ética e uma moral favorável ao lucro, ao trabalho árduo e ao enriquecimento pessoal, o que também foi significador para a nova visão do trabalho no seio social, a saber:

"A reforma religiosa na Suíça representou, antes de tudo, uma necessidade burguesa. O país estava dividido em cidades-repúblicas, como Zurique, Basileia, Berna e Genebra, todas elas importantes centros comerciais. O poder político nessas cidades estava nas mãos de uma burguesia nascente, impedida de expandir seus negócios devido às fortes barreiras impostas pela Igreja Católica. O clero combatia a liberdade econômica e o crescente lucro dos setores mercantis. A burguesia necessitava, desse modo, de novos parâmetros morais, econômicos e religiosos que legitimassem a obtenção do lucro por meio do comércio e da exploração do trabalho assalariado." (Braick, Mota, 2007, pg.192).

O sociólogo alemão Max Weber aponta a religião como elemento fundamental no processo de valorização do trabalho. Em sua obra "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", o autor aponta que os protestantes calvinistas consideravam a dedicação ao trabalho como uma virtude e que essa visão ajudou o capitalismo a ter sucesso em países protestantes.

Ao contrário do sentido católico de castigo cristão atribuído ao trabalho, na ideologia protestante surgiam os conceitos de vocação e predestinação e o espírito capitalista. Nunca a riqueza tinha sido vista de forma tão positiva o que gerou individualismo e uma nova maneira de viver uma vida disciplinada, com apego ao trabalho e ao lucro destinado não à vida mundana, mas à poupança e o reinvestimento na expansão dos negócios.

A virada de percepção também ocorre quando o individuo tem a consciência que tem o poder de satisfazer suas necessidades com o fruto do seu trabalho, entendendo “necessidade” não só como sua subsistência, mas também seu lazer, sua satisfação pessoal, seus anseios, a parte subjetiva. O trabalho passou a designar-se como um ato de dignificação do homem e salvação perante Deus, que possibilitaria riqueza e posição social.

Neste sentido, o ser torna-se digno através do trabalho, sendo a dignidade a qualidade moral que impõe respeito; traz ao homem a consciência do seu próprio valor e nobreza de espírito.

Quanto a esta valoração, importa um mergulho na letra da música “Um homem também chora”, de Gonzaguinha. A construção de um imaginário a cerca da vida e dos anseios humanos e das suas fragilidades, suas conquistas diante das dificuldades e do que a própria sociedade espera deste homem, a saber:

“... Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz...”. (Um homem também chora – Gonzaguinha)

A construção da ideia de dignificação do homem através do trabalho passa a ser um dos estigmas sociais mais pungentes. Esta dignificação se estenderá à família do indivíduo trabalhador, uma vez que, no seio daquela família, seus membros estão buscando o seu sustento através do seu trabalho, do seu esforço, de forma honrada e nobre.

A ideia de que todos precisam trabalhar dignamente advém da condição de suprir necessidades como a moradia, alimentação, vestuário, lazer, consumo, de uma maneira geral. É esta a dignidade que o trabalho permite através do dinheiro. A noção de vida digna é aquela de quem tem para suprir suas vontades e suas necessidades, com o produto do seu suor afastando-se os meios torpes e indignos de se conseguir o que se almeja.

Dissemina-se, portanto, a noção de que o trabalho é a condição preponderante (e socialmente aceita) do ser humano realizar-se, para si e para o o conjunto social, uma vez que, por essa ideia, um sujeito sem trabalho seria impedido de se realizar como homem e cidadão.

Com relação a isso, fazendo um adendo na história, ante esta visão do trabalho na vida do indivíduo, o que não se deve deixar de citar é que em um tempo, na sociedade brasileira, as figuras de controle social, como o Estado e o direito, passaram a se preocupar com essa ideia da dignificação do homem através do trabalho. Ascendia então o combate à vadiagem.

O Vadio era o vagante, e está ligado à ideia de espaço público, todo aquele que não tem ocupação, trabalho, ou que nada faz. Aqui, importa destacar, houve uma certa mudança no significado do termo ócio, pois  para os gregos a ideia de ócio servia para produção do pensar, o exercício da razão, a humanização. Já no século XX, a ideia de ócio passou a incomodar a ponto de criminalizar e se tornar um termo pejorativo: Vadio.

O Código Penal Brasileiro de 1940 retirou o tipo penal da vadiagem do seu âmbito específico, remetendo-o ao disciplinamento pela Lei das Contravenções Penais. Este Código Penal é que introduziu no Brasil a classificação bipartida dos ilícitos penais em crimes e contravenções. Assim, o tipo passou então a ser disciplinado como contravenção e prevista no art. 59 da referida lei.

Vadiagem
Art. 59 - Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:
Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
Parágrafo único - A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena.

O trabalho, portanto, para além da ideia de dignificação da pessoa humana, aqui estava atrelado a um meio de controle social, uma vez que sob essa ótica, aqueles que trabalham não teria tempo/necessidade de se utilizar de meios ilícitos para conseguir sua subsistência, não representando um perigo para a sociedade.

No Brasil, a preocupação com a vadiagem está intimamente correlacionada à abolição da escravatura, a imigração de trabalhadores livres, a falência de uma sociedade prioritariamente agrária e a emergência de uma sociedade com traços capitalistas.

O desenvolvimento capitalista e as novas forças sociais por ele criadas provocaram uma nova dinâmica na expansão das cidades e do mercado e na divisão da sociedade. O modo de produção feudal e a vida nos feudos foram perdendo lugar frente ao desenvolvimento das cidades, estes pontos efervescentes de trocas de mercadorias. Aos poucos se via, portanto, as mudanças na organização política e jurídica, nos modos de produzir e de comercializar, na lógica de acumulação e poupança e no trabalho, em si.

A ponte criada pelo renascimento cultural e do humanismo, das revoltas protestantes e do mercantilismo foram as bases para a construção e eclosão da indústria. O desenvolvimento industrial e a lógica fabril advinda com as revoluções industriais contribuíram para a formação e o fortalecimento de outro significado do trabalho atrelado à moral burguesa individualista. Ademais, o uso contínuo das máquinas fez com que os industriais passassem a buscar toda forma de mão de obra que pudesse baratear seus custos de produção.

Assim, o trabalho humano evoluiu da subsistência, à torpe escravidão, perpassando pelos servos da idade média. Da valorização do artífice no período renascentista, ao iluminismo da Idade moderna, desembocando na ideia de trabalho digno: aquele que enobrece o indivíduo que não estará mais relegado à vadiagem e aos vícios. Porém, as péssimas condições dos ambientes fabris não fazia jus a lógica de dignidade antes cunhada. 

domingo, 11 de agosto de 2019

Desigualdade social no Brasil





É comum ouvirmos ou lermos que o Brasil é um dos países socialmente mais desiguais do mundo, que há uma persistência histórica de uma estrutura social em que amplos estratos da população se encontram imersos em pobreza material e que há dramáticas diferenças de acesso a direitos sociais básico. Longe de ser apenas uma representação negativa do Brasil, a persistência da pobreza contrastando com um acúmulo de riquezas em parcelas diminutas da população é concretamente um dos mais graves problemas sociais do país.

Para o aprofundamento do entendimento da desigualdade social no Brasil, ao menos nas questões de desigualdade de renda e acúmulo de riquezas, se faz necessário analisar o perfil geral da sua geração e da sua distribuição. No caso brasileiro, o Produto Interno Bruto (PIB), que é soma de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região, durante um período determinado, situou-se entre 2012 e 2018, entre o 7º e o 8º do mundo. 



Gráfico 1- Maiores PIB's do mundo em 2012




Tabela 1 - Ranking dos maiores PIB's mundiais

Em que pese crises momentâneas e desacelerações ocorridas na economia brasileira, nos últimos anos percebe-se, pelos dados acima, que o PIB brasileiro não é desprezível quando comparado aos de outros países do mundo. Sendo assim, o fenômeno social da pobreza não pode ser explicado tendo por base uma escassez geral na produção de riquezas e rendas do país.

A fim de analisar e contrastar os números do PIB brasileiro com a questão da desigualdade social apresenta-se aqui alguns dados referentes ao índice de Gini do país.

O Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um (alguns apresentam de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. Na prática, o Índice de Gini costuma comparar os 20% mais pobres com os 20% mais ricos. 

Vejamos alguns dados do índice de Gini brasileiro comparado com o de outros países:


Infográfico 1- Os Ginis do mundo em 2014



Se faz relevante comparar o índice de Gini brasileiro com o de alguns outros países. Para efeito de análise, observe-se na Tabela-1 o PIB do Canadá, da Austrália, da Espanha e da Coréia do Sul. Em 2014 esse países tinham, respectivamente o 11º, 12º, 13º e 14º PIB's do mundo. Já o Brasil apresentava o 7º maior PIB. Porém, quando observado o mapa acima percebe-se que estes quatro países, mesmo com PIB's menores que o brasileiro, possuíam Índices de Gini melhores. Tal raciocínio sugere que o Brasil possui, ainda em que pese efeitos de crises econômicas locais e globais, um volume de produção de riquezas e rendas nada desprezível. Porém, a renda se mantém concentrada em alguns poucos estratos da população. 

Ainda como sugestão dos dados, percebe-se novamente que fenômeno da pobreza no caso brasileiro não comporta como explicação uma escassez geral da produção de riquezas e rendas, mas sim, conforme já dito, uma alta concentração das rendas e das riquezas socialmente produzidas.

Quando comparados alguns Índices de Gini do mundo percebe-se que tais dados evidenciam Brasil como um dos países mais desiguais do mundo.

Tabela 2- Índices de Gini do mundo em 2016

Tabela 3- Piores Índices de Gini do mundo em 2017

Observa-se que em 2017 ao mesmo tempo que o Brasil marcava o 7º PIB do mundo, também evidenciava o 10º pior Índice de Gini. Mais uma vez os dados sugerem uma economia com relevante potencial de produção de riquezas e rendas, porém com uma estrutura social que leva à concentração desta produção.

Um instrumento que bem evidencia a concentração de renda em um país ou região é um tipo de gráfico conhecido como Parada de Pen.



Infográfico 2- A Parada de Pen

Gráfico 3- Parada de Pen, Brasil  1997-1999



O gráfico da Parada de Pen permite visualizar a grande concentração de renda no brasil, onde a imensa maior parte da renda concentra-se em menos de 5% da população. Em que pese o gráfico acima apresentar dados dos anos de 1997 a 1999, outros dados mais atuais atestam a continuidade e até mesmo aprofundamento da concentração de renda (matéria sugerida: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/desigualdade-bate-recorde-no-brasil-mostra-estudo-da-fgv/?fbclid=IwAR0y-yz4RFDWdzwb-Zg3yD5kTgIHXSgrK1IBxsUI6Z3W_VhwOVRNedOLmSY). 

A partir dos dados do PIB e do Índice de Gini brasileiro e da Parada de Pen, observa-se uma economia com razoável produção social de riquezas e rendas, porém com alta concentração desta produção. Esta alta concentração salienta que a há no Brasil uma arquitetura social bastante desigual e concentradora. 



O sistema tributário como reprodutor da desigualdade social brasileira


A persistência da desigualdade social tem sido um dos principais objetos de estudos das Ciências Sociais no Brasil. São vários os sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e economistas que se dedicam a entender esse fenômeno social. Destacaremos aqui o artigo do economista e sociólogo Marcelo Medeiros (Os Ricos e a Formulação de Políticas de Combate à Desigualdade e à Pobreza no Brasil), especialista no tema.




Conforme já visto, a estratificação social brasileira tem como o seu maior destaque a concentração de renda e riqueza, gerando altos números no Índice de Gini. Tal estrutura pode representada graficamente numa pirâmide, onde há poucas pessoas no topo, um pouco mais no centro e um número bem maior na base. Destacando que o que diferencia é na parte da cima da representação gráfica que está a maior parte da renda e da riqueza.


Dessa forma, a representação colocada indica uma sociedade com poucos, situados no topo, concentrando a maior parte da renda e da riqueza. Em contraponto, na base, estão muitos tendo que dividir entre si a menor parte da renda e da riqueza.

Sociedades com baixos Índices de Gini não comportam tal representação acima, uma vez que a distância entre as parcelas mais ricas e mais pobres é menor. Há também melhor distribuição da renda, o que indica uma maior concentração populacional nos estratos sociais médios. A melhor forma de representação gráfica destas estruturas sociais seria um losango.



O grande problema que Marcelo Medeiros tenta responde no seu estudo é saber que tipos de ações do poder público poderiam contribuir para a diminuição da desigualdade social, consequentemente a diminuição do Índice de Gini e a transição da estrutura social brasileira para uma representação mais próxima do losango do que do triângulo.

Medeiros parte da constatação de um dos principais instrumentos que reforçam a concentração da renda socialmente produzida no Brasil é o sistema tributário, ou seja, os impostos. Não há, no seu argumento, uma crítica ao tamanho volume tributário brasileiro, mas sim a quem ele é direcionado. 

O sistema tributário brasileiro é regressivo, ou seja, da renda das camadas sociais mais pobres são extraídos custos com impostos proporcionalmente maiores do que os custos com impostos pagos pelos mais ricos. Isso faz com que haja transferência de renda dos mais pobres para o mais ricos e sedimenta a permanência da desigualdade social.



(...) o país segue com uma carga tributária apoiada em tributos sobre bens e serviços (cerca de metade de toda a arrecadação), com reduzido peso da tributação sobre renda e patrimônio (23% da arrecadação). (https://www.oxfam.org.br/tags/relatorio-sobre-desigualdades).



Ou seja, mais da metade do sistema tributário brasileiro está posto de maneira embutida no custo do consumo de bens e serviços. Isso faz com que o consumo feito por camadas de média e baixa renda seja bastante taxado e que daí, portanto, haja uma transferência de renda dos de baixo para o estado. Na ponta de cima da estrutura social, onde há concentração de patrimônio e estão as maiores rendas, o peso dos impostos se dá forma mais branda, pois proporcionalmente acaba sendo menor.  Isso faz com que haja, proporcionalmente, menor pagamento de impostos por parte dos mais ricos. O pagamento proporcional de impostos ser maior para os mais pobres do que para os mais ricos é o que se chama de sistema tributário regressivo. Tal sistema contribui fortemente para a manutenção dos altos níveis de desigualdade social no Brasil.



Conforme já posto, Medeiros parte da contatação de que o Brasil pratica um sistema tributário regressivo. A partir disso, levanta hipóteses de ações públicas que poderiam ser efetivadas no sentido de diminuição da desigualdade social. A partir de agora veremos cada uma destas hipóteses levantadas e que conclusões o pesquisador chega a cada uma delas.

Hipótese 1- Diminuir o número de filhos dos mais pobres?
A pobreza no Brasil não pode ser associada a um número elevado de filhos nas famílias. Se nenhuma família brasileira tivesse mais de quatro filhos com até cinco anos de idade, a proporção de pobres seria a mesma, 33%. Se o controle fosse mais radical e não houvesse no Brasil um filho sequer de até cinco anos de idade, o número de pobres (e da população como um todo) diminuiria, mas sua proporção cairia apenas um ponto percentual (MEDEIROS, 2003)

Hipótese 2- Buscar altos índices de crescimento econômico?
Mesmo que o país fosse capaz de manter, por duas décadas, taxas estáveis de crescimento de 4% ao ano, isto é, mesmo se crescesse mais do que o dobro da velocidade das últimas décadas e duplicasse o PIB atual, a pobreza incidiria ainda sobre 12% da população. Apenas no caso de ocorrer um crescimento a taxas estáveis de 6% ao ano, o que corresponderia a repetir duas vezes consecutivas o “milagre econômico” da década de 1970, sem, porém, piorar a distribuição da renda, a incidência da pobreza ficaria abaixo do patamar dos 10% da população. O termo “milagre”, nesse caso, dá uma dimensão adequada de quão difícil seria crescer novamente nesse ritmo. (MEDEIROS, 2003)

Hipótese 3-  Tributos como forma de combate a desigualdade?
Para Marcelo Medeiros uma solução viável para diminuição da desigualdade seria transferência da renda nacional via impostos progressivos. Ou seja, aumentar a carga tributária sobre patrimônio e renda dos mais ricos, ao passo que, na mesma proporção, diminuir a carga aos mais pobres, na sua maior parte embutida no custo final de bens de consumo e serviços. Dessa forma, a renda do topo seria desconcentrada e redistribuída na base, diminuindo assim a desigualdade e fomentando uma outra estrutura social.



Como a desigualdade social é vista pelos estratos mais ricos e mais pobres no Brasil?

Conforme visto acima, das hipóteses testadas por Marcelo Medeiros a que é apontada com maior potencial de eficácia na desconcentração da renda nacional seria a que modificasse a lógica do sistema tributário brasileiro, de regressiva para progressiva. Porém, tal caminho implica em conflitos de interesses, pois significaria não apenas distribuir a renda produzida, mas levaria, a longo prazo, a uma significativa mudança na estrutura social, da pirâmide ao losango. É possível supor que a diminuição da desigualdade social resultaria, num país historicamente muito desigual, num maior potencial de ascensão social dos de baixo e consequentemente o acirramento da concorrência social com os do meio e de cima da pirâmide social gerando assim conflitos sociais, não apenas por rendas e riquezas, mas também por prestígio e poder, entre os estratos ascendentes e os que já se encontram em posição média ou superior na estrutura.

É a partir da percepção de que o combate à desigualdade social abre conflitos sociais próprios, pois implica em disputa de recursos que são escassos, que a socióloga brasileira Celi Scalon trás um estudo sobre como a questão de como a desigualdade é vista pelos brasileiros. De uma forma geral, a sua pesquisa partiu de aplicação de questionários com pessoas de grupos sociais, os de altíssima renda e os de baixíssima renda. Foram selecionadas famílias pertencentes aos 10% mais ricos e os 10% mais pobres da população. "O survey (pesquisa) sobre desigualdades teve cobertura nacional, com duas mil entrevistas, realizadas em 195 municípios, incluindo áreas urbanas e rurais". (SCALON, 2007).


Dentre as diversas perguntas do questionário algumas foram essas: 

Pergunta: Somos uma sociedade desigual? 
Resultados: Na elite, 89% concordaram totalmente, e 7,5% concordaram em parte, ou seja, 96,5% concordaram com essa afirmação. O que estamos aqui denominando “povo” inclui 85% que concorda totalmente, e aproximadamente 11% que concorda em parte. (SCALON, 2007)


Pergunta: Que ator social tem a responsabilidade de combater a desigualdade social?

Resultados: Tanto elite como povo atribuíram esse encargo quase exclusivamente ao governo, com percentuais de 63% e 62% respectivamente. Se somarmos a esse o percentual que incorpora os respondentes que escolheram “deputados e senadores”, ampliando assim o leque do que entendemos como poder público, temos 74% da elite e iguais 74% do povo. Quando se trata de chamar para si a responsabilidade, observamos parcos 6% da elite e 4% do povo. (SCALON, 2007)

É perceptível uma imagem de concordância, tanto da elite quanto dos mais pobres, de que é o estado que possui a responsabilidade central no combate a desigualdade. A primeira vista isso sugere um consenso e um insignificante potencial de conflito em relação a que ator social deve comandar o combate à desigualdade. Se combinássemos isso com a hipótese de modificação do sistema tributário apontada por Marcelo Medeiros poderíamos supor que não há pontos de conflitos entre os de cima e os de baixo da estrutura social brasileira com esse tema, uma vez que há concordância geral de que a desigualdade é um problema real e que de que o estado é o melhor ator para intervir neste fenômeno social.

Porém, nos questionários estudados por Scalon também foi posta a questão de mudança de sistema tributário de regressivo para progressivo, eis a pergunta e os resultados:

Gráfico 4- Opiniões dos estratos mais ricos e mais pobres sobre impostos progressivos

Perceba-se que, nesse ponto, que o concesso exposto anteriormente, sobre a desigualdade social como problema e o papel central do estado no seu enfrentamento, não se repete. Dos que concordam totalmente com um sistema tribuário progressivo a maioria está entre o "povo", 31,3%, já na elite o percentual é 20,9%. Quanto aos que discordam totalmente: 23,2% do "povo" e 41,9% da "elite". Ou seja, os estratos mais ricos e mais pobres divergem quanto a questão da transferência de renda dos mais ricos com vistas ao combate da desigualdade social. 

(...) a solução passa pelo Estado, que, por sua vez, tem as mãos atadas, pois não deve aumentar impostos para investir em benefícios sociais. Por outro lado, a sociedade não aparece como o principal ator na solução das desigualdades. Os agentes não se reconhecem na posição de combater as disparidades, mesmo afirmando que o fato de não se unirem para combatê-las contribui para sua persistência. Diante de tal cenário, parece não haver saída possível. (SCALON, 2007)
A desigualdade percebida é pelos estratos pesquisados como um grave problema, porém a desconcentração da renda é um tema delicado, pois significa a modificação de posições sociais referentes, nos conceitos weberianos, à riqueza, ao prestígio e ao poder. Modificar a estrutura social é um jogo onde alguns estratos sociais ganham e outros perdem, daí ser o problema da desigualdade social um ponto de conflito, ainda sem solução de concesso na sociedade brasileira.



Leitura obrigatória: 

  • Tempos Modernos, Tempos de Sociologia. Capítulo 18 (Desigualdades de Várias Ordens). Página. 278-293.